MAIS DE 50 PESSOAS DE COMUNIDADE RELIGIOSA SÃO RESGATADAS EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS À ESCRAVIDÃO NO PARÁ
Penas aplicadas pelos líderes da comunidade criada em 1997 incluíam a obrigação de silêncio duradouro, raspagem da cabeça de mulheres e crianças, além de castigos físicos.
Mais de 50 trabalhadores de uma comunidade religiosa chamada 'Lucas', no município de Baião, no nordeste do Pará, foram resgatados em condições análogas à escravidão. Nesta comunidade, segundo órgãos federais, os trabalhadores eram obrigados ao silêncio duradouro, raspagem da cabeça de mulheres e crianças, além de castigos físicos.
A operação de resgate ocorreu em junho e julho de 2022, mas só foi divulgada nesta segunda-feira (19), pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). Na época, cinco pessoas foram presas. Os cinco suspeitos também são investigados por explorar as vítimas em um estabelecimento em Tucuruí, no sudeste paraense.
No total, foram 55 pessoas resgatadas após denúncias ao MPT. Segundo o órgão, os trabalhadores atuavam em um bar de Tucuruí, onde cumpriam jornadas exaustivas, sem direito a salários ou qualquer benefícios previstos em lei.
"Constatamos que o trabalho análogo ao de escravo ocorria tanto no estabelecimento em Tucuruí, quanto na comunidade Lucas, em Baião, havendo trânsito entre os mesmos trabalhadores nos dois locais. O ideal comunitário e religioso era utilizado para enganar e manter homens e mulheres presos a um círculo de pobreza e de exploração cruel em benefício de seus líderes. O grupo era convencido a permanecer no local acreditando que aquela era a melhor forma de se viver", destacou a procuradora Tathiane Nascimento.
Foi durante as apurações da denúncia acerca dos trabalhadores de Tucuruí que foi constatado que o ponto comercial estava vinculado à comunidade religiosa, localizada na zona rural de Baião.
A Polícia Federal (PF), no dia 30 de junho, prendeu cinco pessoas durante a operação "São Lucas", deflagrada para investigar a comunidade pela suspeita de submeter pessoas à situação de trabalho análogo à escravidão, além de tortura e crimes contra dignidade sexual de crianças e adolescentes no Pará.
Comunidade religiosa
De acordo com depoimentos e documentos apreendidos, a comunidade 'Lucas' foi fundada por um pastor de Belém, em 1997. Após o falecimento do líder, em dezembro de 2021, outros cinco pastores que já atuavam na comunidade, assumiram o chefia.
Assim, a comunidade funcionava, na prática, como uma organização econômica, com interesses definidos e sob o controle de pessoas que exerciam o comando nas atividades dos demais membros, não havendo qualquer característica de associativismo, cooperativismo, trabalho voluntário ou serviço religioso, afirma o MPT.
Segundo relatos das vítimas, no início, havia uma espécie de "regra igualitária", em que o resultado do trabalho de todos seria dividido entre os participantes. Mas, com o tempo, os líderes começaram a explorá-los e a mantê-los sob guarda, poder e autoridade.
Segundo o MPT, eles valiam-se do elemento religioso para coagir os trabalhadores e demais moradores a cumprirem as ordens e satisfazerem as vontades, inclusive crianças e adolescentes, sob pena de punições físicas e morais, além de humilhação pública, que configuravam tortura.
Bar em Tucuruí
Em 2015, conforme as investigações apontaram, os dirigentes da comunidade passaram a administrar um bar em Tucuruí, que utilizava mão de obra da comunidade. Durante as inspeções realizadas no estabelecimento foram encontrados 13 trabalhadores.
Segundo esses trabalhadores, todos os adultos da "Lucas" atuavam no local em uma espécie de rodízio com a sede rural, em períodos que podiam durar desde alguns dias até meses, e ficavam alojados no próprio bar ou em casas mantidas no município.
Também foram localizados integrantes da comunidade em duas movelarias, situadas nas duas cidades, que também desenvolviam atividades no bar.
Segundo o MPT, nenhum deles recebia valor a título de salário e toda a renda era gerenciada pelos líderes, além de não haver horário fixo para iniciar e terminar os trabalhos.
De acordo com as vítimas, a submissão ao trabalho forçado, bem como a cessão gratuita dos seus bens e direitos era uma forma de se viver bem e de se alcançar algum "privilégio espiritual". Os líderes retinham benefícios como seguro defeso, auxílio Brasil, salário-maternidade, dentre outros.
Situação degradante
Por meio das apurações, foi descoberto que penas eram aplicadas pelos líderes. Elas incluíam a obrigação de silêncio duradouro, raspagem da cabeça de mulheres e crianças, além de castigos físicos.
Os homens poderiam manter relações poligâmicas e as mulheres também eram utilizadas como objeto de premiação ou punição.
Em caso de obediência aos líderes, os homens poderiam ter uma ou mais mulheres; caso descumprissem a ordem, eles também poderiam ser punidos e deixar de ter uma. Durante essa troca, os filhos biológicos também eram levados e tinham as mães trocadas.
"Além da violência psicológica e da tortura, a ideia que se depreende do comportamento desses líderes é que as crianças cresçam sem essa noção de família para que permaneçam sempre à disposição como mão de obra de trabalho, em uma grave violação da dignidade da pessoa humana", complementou a procuradora.
Além da retenção dos salários e das torturas físicas e psicológicas, outras condições degradantes de trabalho foram encontradas.
Imagens mostram os alojamentos dos trabalhadores, que não tinham o básico de segurança, vedação, higiene, privacidade e conforto, e contrastavam com o luxo das habitações dos líderes.
Nos quartos que ficavam aos fundos do bar, por exemplo, havia escombros de construção e muito lixo. Alguns não possuíam armários, ficando os objetos pessoais dos trabalhadores espalhados pelo chão.
Segundo o MPT, na maioria dos cômodos havia fiação elétrica exposta, aumentando o risco de incêndio. Além disso, na área usada para lavanderia, a água escoava para um terreno baldio, formando lama e atraindo insetos, ratos, baratas e animais peçonhentos.
Já nas duas movelarias inspecionadas, foram encontrados equipamentos e máquinas com irregularidades que acarretam situações de riscos graves e iminentes aos trabalhadores.
Diante dos crimes, os cinco envolvidos foram presos. Sobre o resgate dos trabalhadores, a procuradora do Trabalho, Tathiane Nascimento, esclareceu que foi feito levando em consideração o contexto em que eles foram encontrados.
"Quando nos deparamos com uma situação como essa, as vítimas são afastadas do local de trabalho e vão para o seu local de origem, mas neste caso eles já estavam em suas casas. Muitos, inclusive, nasceram ali e não tinham para onde ir. O resgate foi feito eliminando o elemento opressor, que são os líderes da comunidade, com as suas prisões", explicou a procuradora.